Comecei por ler este post:
Tia preta
Ontem recebi um telefonema e, do outro lado, uma voz quebrada disse:- Olá, daqui é a tia preta!Fiquei contente por a ouvir mas, logo depois, entristeci. Entristeci muito. A tia preta, que lutava há anos contra um cancro na mama, ligou-me para informar que, agora, apareceu-lhe um cancro na cabeça, inoperável. E falou, pela primeira vez, num tom que, sem ser de despedida, era. Doeu-me fundo.A tia preta não merecia. Não ela. Não sabem que é? Deixo um texto que escrevi sobre ela, para as Selecções do Reader's Digest. A tia preta é boa. Tem um coração enorme. E é completamente estúpido e inútil que morra, assim. Para mim, ela é mais uma das provas de que estamos, sobretudo, nas mãos da sorte. E ela não tem tido sorte. Hoje estou triste. E ainda com mais medo do que a sorte me/nos reserva. Infelizmente, não basta ser bom para se ser recompensado.
«Tia, vou à cozinha comer cereais, está bem?». Lizete Baessa ainda não tinha acabado de dizer que sim, «claro meu querido», quando outra voz atropelou a primeira: «Tia, ela não me deixa brincar…». A tia não perde tempo e apressa-se a chamar Lara: «Então? Porque é que não brincas com o Polho?». Lara explica que o miúdo, minúsculo e com ar de reguila, quer ficar com os brinquedos todos. Lizete admoesta o pequeno, pede que façam as pazes, «Vá, vão lá brincar juntos, vá», e claro que nisto um outro pedido se sobrepõe: «Tia, desculpe interromper… Vou só ali ao escritório buscar baunilha, está bem?» E ainda a tia preta ensaiava um «claro, meu amor» quando uma nova súplica se escutou: «Tia…»Lizete Baessa tem 57 anos e no seu bairro, em Chelas, ela é a «tia preta». Todos a conhecem assim, todos são seus sobrinhos. A sua casa, o seu T2, que comprou à Câmara Municipal, não é sua, na verdade. É de todos os que queiram entrar. Mas não é só entrar. Não é só entrada por saída. A sua casa está aberta para tudo o que se queira. As crianças são livres de chegar de manhã, de tarde, de noite. De comer, tomar banho, ver televisão, fazer os trabalhos de casa, passar a noite. As crianças podem ter mãe e pai mas são, todas elas, os seus meninos. «São os meus meninos, sim. A partir do momento em que entram em minha casa, os miúdos são meus. Os filhos são deles, dos pais deles, mas os miúdos são meus.»A tia preta vive há 15 anos no bairro de Chelas. Uma zona degradada onde os problemas sociais gritam em cada porta, em cada janela, em cada família. Lizete chegou há 15 anos e não tardou a fazer amigos. Um rapaz ajudou-a a montar a mobília, ela em troca oferecia-lhe comida. Daí a conhecer a irmã foi um instante. E a irmã tinha um bebé de um ano, o Pipo, a quem de imediato ganhou afeição. «Dá-me o teu menino», dizia Lizete à mãe, com o sorriso grande que é a sua marca. Certo é que o Pipo começou a frequentar a casa como quem frequenta a creche. Todos os dias. E depois dele, a irmã, Liliana. E por arrasto os outros, do prédio, das casas do lado, das ruas de trás. Pipo tem hoje 15 anos. Continua a entrar na casa da tia preta como quem chega ao seu próprio lar. Ele, a irmã, e todos os miúdos que se sentem ali melhor do que na casa onde vivem os familiares.E, no entanto, não é bem como quem entra na sua própria casa. Muitos destes miúdos têm tudo para ser problemáticos. Muitos deles nasceram e vivem em famílias disfuncionais. Muitos terão comportamentos agressivos, muitos poderão ser revoltados, muitos serão como um pé-de-vento nas suas casas. Mas nada disso se nota, nada disso se sente na casa da tia preta. Ali há um respeito que é raro. Todos, dos dois aos 17 anos, pedem «por favor», todos dizem «obrigado», «com licença», ninguém levanta a voz. Se a tia preta diz não, é não. Se a tia preta diz sim, é sim. Naquela casa, têm todos uma educação tão esmerada que parecem fazer parte da mais nobre das famílias. O respeito nota-se até no modo como olham Lizete, um misto de ternura, gratidão e deferência. «Aqui há regras. Eles respeitam-nas e não é preciso muito. Todos sabem o que fazer, todos sabem como funciona a casa, todos ajudam, como numa família. Claro que às vezes me zango. Tenho ali a ‘sete e quinhentos’ para me ajudar, e o banco do mocho. Qual é a casa onde uma mãe não se zanga com os seus meninos?» A «sete e quinhentos» é uma colher de pau que, apesar de nunca ter tido uso, serve de ameaça séria sempre que alguém foge da linha. O «banco do mocho» é uma pedra que existe à porta de casa, para onde vai quem se porta mal e tem de ir pensar na vida.A partir das cinco da tarde e até à uma da manhã, a casa de Lizete Baessa é uma verdadeira instituição. Os miúdos começam a chegar da escola e vão ficando. Uns lancham, fazem os deveres e vão embora, outros jantam, outros ficam para dormir. Nunca se sabe. Às vezes, também vêm almoçar. «Ligam da escola a dizer que não gostam do almoço. Perguntam se podem vir comer umas salsichas. Claro que podem. Há sempre comida para mais um.» Para tudo isto, Lizete não conta senão consigo. E com a ajuda de quem, de repente, se lembra dela e da sua «obra» e lhe traz arroz, açúcar, massa, salsichas, atum. De resto, é ela quem gere a casa e os seus meninos. Tudo o que ganha vai para esta família alargada. E a vida, ainda por cima, não quis ser meiga para com ela.Há quatro anos, esta ex-secretária teve de deixar de trabalhar porque teve de ser operada a uns pólipos que lhe apareceram nos intestinos. Ela não sabe se era o corpo a dar o aviso para algo pior. A verdade é que, dois anos depois, estava no duche, a cantar, como sempre, e de repente calou-se. E assim ficou, calada, com três mamas em vez de duas. Lizete soube imediatamente. «Pensei: estou feita. Percebi logo. Fui à médica de família no dia seguinte de manhã. E passado muito pouco tempo estava no IPO [Instituto Português de Oncologia]. Fui muito bem tratada. O meu carcinoma no peito media 7 centímetros. Estive um ano a fazer sessões de quimioterapia, para o reduzir. Depois fui operada, fiz 36 sessões de radioterapia, e agora continuo com a quimio, duas vezes por mês. Vamos ver… Está estável.»Quando chegou ao IPO só pediu que não lhe escondessem nada: «Disse: senhor doutor, eu vivo sozinha numa casa cheia de crianças. Preciso de saber o que vai ser de mim, para os poder reunir e explicar.» E assim foi. Nesse dia, há dois anos, reuniu os seus meninos. E colheu reacções fabulosas. A reacção que mais a comoveu foi a dos que fugiram: «Houve um grupo que desapareceu. Disseram: ‘A tia vai morrer. Vamos ficar sem a tia’. E não quiseram esperar para ver. Não quiseram assistir a esse abandono. Foi o modo que tiveram de negar mais um sofrimento, mais uma perda nas suas vidas. Fugiram. Negaram-se a serem deixados. Comoveu-me isto. Mas eu cá continuo! E tenciono continuar!»Continua e garante que são os seus meninos quem lhe dá força. «Acho que se não os tivesse não estaria aqui, cheia de energia, como se isto do cancro não fosse nada comigo. No dia em que vim do hospital, eles encheram-me a casa, como sempre, e não me deixaram ir à cama. Eles não me deixam parar, sabe minha querida? São a minha alegria. São a minha vida.»Na casa do lado, vive Pedro. O tio Pedro. É ele que a apoia. É ele quem entra, enquanto a conversa decorre (interrompida mil vezes pela palavra «tia» suplicada por uma voz infantil), para levar roupa para secar. Roupa dos meninos, claro, que ali – como em qualquer casa onde vivem crianças – também se trata das roupas. «Dantes, quando eu tinha loiça em vidro, eles às vezes partiam um prato, um copo. E lá iam a correr bater à porta do tio Pedro para pedir que lhes arranjasse um prato dos seus, um copo dos seus, para eu não me zangar. Coitado! O desgraçado ficou sem serviço. E eu aprendi a lição: agora tenho um serviço de plástico! Mas acredita que também se parte?»O tio Pedro tem a chave da casa da tia preta. As regras estão definidas. A tia sai e deixa a chave na porta ao lado. Quem chegar primeiro (ela ou uma das muitas crianças) apanha a chave e entra em casa. Às vezes é Lizete quem chega primeiro, outras vezes quando entra já lá está um, dois, dez, vinte. «No Verão chegamos a ser 25 à mesa. Faço uma grande tachada de frango frito ou salada russa. E comemos. E somos felizes. Eles falam comigo sobre tudo o que querem. Às vezes dizem: ‘Tia, preciso falar-lhe’. E eu só pergunto: ‘A sós ou falamos aqui todos?’ E às vezes eles dizem: ‘Hoje é só com a tia’. E eu oiço, dou conselhos, carinho… o que eles precisam. Sobre os pais não sei nada. Não quero saber. Não sei se ganham 100, 200, não sei nem me interessa se ganham mais do que eu. A mim interessam-me os miúdos. É por eles que eu quero fazer alguma coisa. É a eles que eu quero deitar a mão. Segurar. Ter em casa, debaixo de olho.» A verdade é que ali estão entre iguais. A verdade é que ali têm regras. Têm alguém que lhes pergunta pela escola, pelos trabalhos de casa, pelos testes. Alguém que puxa as orelhas na hora certa. E aplaude quando deve de ser. Alguém que dá comida e colo e limpa o rabo. «Só gostava de ter uma casa maior, para receber mais meninos, ou os mesmos mas com outras condições. E, claro, se pudesse ter mais vezes carne e peixe para lhes dar…». Lizete não tem ajudas. Ou tem, pouquinhas. «Ainda agora fui fazer um contrato com a EPAL… recebi uma factura muito alta para pagar e tive de combinar um pagamento a prestações…», sorri. «O que é que eu hei-de fazer, minha querida? O que é que eu hei-de fazer?»Fábio tem 16 anos e já perdeu a conta aos anos que frequenta a casa da tia preta. «Essa tia é uma senhora exemplar. Porque nos acolheu, porque nos acolhe, porque nos dá a mão. Porque não nos deixa ficar mal, e podemos contar sempre com ela.» Com ela, com o seu colo, com o seu sorriso. Lizete Baessa é a tia preta. É a mãe (ela que nunca foi mãe de verdade, no sentido de transportar um bebé no ventre), é o pai, é a família que muitos não têm. E que outros têm, mas que só debaixo da sua asa parecem encontrar a paz para poderem aprender a voar.
**Este texto foi publicado na revista Selecções do Reader's Digeste
Hoje, estes:
Ajudar a tia preta
Liguei-lhe agora. Disse-lhe:- Tia preta... tenho aqui uma série de pessoas que a querem ajudar. Do que precisa?- Ah... Carne e peixe. De carne e peixe preciso muito.- É? E mais?- Azeite e leite.- Ok. E para si, tia? - Saúde, que é o que não tenho.- Oh, tia preta, mas saúde eu não lhe posso dar, infelizmente. Há algum miminho, alguma coisa que gostasse, que se soubesse bem?- Umas cerejinhas. Poucas, para não se estragarem.Hoje ainda vou levar umas cerejinhas à querida tia preta. E carne, também.Quanto a vocês, se quiserem conribuir com carne, peixe, azeite e leite... acho que ela ficava muito feliz. Porque os seus meninos são a sua razão de viver, e ela agora precisa ainda mais de se agarrar a eles (e eles a ela).P.S: Quem quiser enviar, mande-me um email, que eu depois explico como havemos de fazer.P.S2: Espalhem a palavra, se quiserem, nos vossos blogues. Vamos animar esta mulher única!
A morada da tia preta
Fui vê-la. Estava deitada, inchada e a roer uma maçaroca. Levei-lhe as cerejas. Enquanto conversávamos, a tia preta não descurava os "seus" meninos: - Quem é que está a falar com a boca cheia?- Sou eu, tia, desculpe.E, daí a mais um bocado:- Que barulho foi este?- Fui eu com a cadeira, tia, desculpe.Como sempre, os meninos de Chelas, alguns com histórias de vida tão duras, ali não faltam ao respeito. Sabem agradecer a quem tão bem lhes faz. A tia preta estava bem disposta. Perguntei-lhe como se sentia, se estava revoltada. Soube do cancro na cabeça 1 mês exacto depois de ter tido alta de uma longa luta contra um carcinoma na mama. Estava curada. Só tinha de ir à consulta um ano depois. E afinal, 1 mês depois, um tumor inoperável na cabeça. Ela olhou-me e disse:- Não estou revoltada. Nada, nada. É que nem penso nisso. Quero é ficar boa! Eu sei que todos temos de morrer. Uns mais cedo, outros mais tarde. Quando chegar a minha vez, que vá com calminha... - e sorriu um sorriso grande.Minha gente, é assim. A tia preta precisa de feijão catarino, de cereais, de azeite e leite (muito). Precisa de carne e de peixe (muito). Tem duas arcas congeladoras, para guardar tudo. E despensa. Quando lhe perguntei "E se vem muita gente e depois não tem como dar vazão?", ela sorriu: "Eles devoram tudo..."Diz que também criou uma associação, entretanto, e que me vai dar o nib. Mas, sempre muito séria, avisou: "Estou aqui há 16 anos. Sempre vivi e ajudei esta gente toda com o meu dinheiro e com as coisas que me iam dando. Não era agora que ia usurpar esse dinheiro que me dão. É todo para eles, para lhes comprar coisas a eles." Tão linda.A morada para onde podem enviar as coisas ou onde as podem entregar pessoalmente (se for carne e/ou peixe ou se tiverem vontade de a conhecer) é:Rua Ricardo Ornelas, 375, R/C dto.Bairro da FlamengaChelas.1950-331 LisboaIsto fica perto do parque da Bela Vista, onde se realiza o Rock in Rio. Procurem no Google Maps e depois é perguntar na rua, que toda a gente a conhece.A tia está sempre em casa, a porta está sempre aberta. Se estiver fechada, há sempre o tio Pedro, que vive na porta em frente, e que a ajuda há anos. É um querido, também. A tia gosta de receber gente, fica feliz. Sintam-se à vontade.Eu podia fazer um cartão continente ou uma coisa dessas. Mas só a hipótese de alguém poder pensar que eu ficava com dinheiros ou isso fez-me desistir da ideia. Obrigada. Muito obrigada.
EM BREVE DOU O NIB DA ASSOCIAÇÃO DA TIA PRETA. PODEM SOSSEGAR. ELA É TÃO HONESTA QUE O VOSSO DINHEIRO SERÁ BEM EMPREGUE PARA OS SEUS MENINOS, SUA ÚNICA PREOCUPAÇÃO.
In: http://coconafralda.blogspot.com/
Eu não conheço a "Tia preta" mas parece-me uma pessoa linda e uma mulher admirável!!
Se eu tivesse esta generosidade e este sentido de entrega, queria ser uma "tia" assim. Mas não sou, não consigo.
Por isso divulgo a história desta mulher admirável. Se quiserem ajudar :)
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